"Aprender é a única coisa de que a mente nunca se cansa, nunca tem medo e nunca se arrepende"
Leonardo da Vinci

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Defenestração


Notícia no jornal francês de hoje: uma criança de 10 anos de idade defenestrada com pés e mãos atados.


De cara me lembrei do caso de Isabella Nardone. Nesse caso, porém, a criança sobrevive. Está em coma, em estado grave, mas ainda há esperança. Felizmente.

Fonte: Ensaios
Durante o almoço, do qual não participei, por estar "internada" na minha sala, enterrada sob pilhas de papéis, livros, textos e do prazo fatal para a entrega da tese, meus colegas discutiam o assunto quando os espanhóis começaram a "encarnar" os franceses pela existência de um verbo específico para dizer "jogar pela janela". Em francês, tal ato é descrito pelo verbo défenestrer, mas em espanhol, não há um verbo sequer equivalente.


Na volta do almoço, uma amiga me conta o ocorrido e me pergunta se em português há um verbo que signifique jogar pela janela. E, surpresa com minha resposta, disse: você tinha que ter almoçado conosco! Sim, porque, em português, por influência do francês, é bem verdade, nós temos o verbo defenestrar. Admito que esta é uma daquelas palavras empoeiradas que fazem alguns de meus amigos dizer que eu, às vezes, falo como uma pessoa idosa, mas o fato é que o verbo existe.


E, nesse mesmo sentido, encontrei um texto de Luís Fernando Veríssimo que achei interessante  compartilhar por  brincar  com as minhas queridas palavras emboloradas.


"DEFENESTRAÇÃO


Certas palavras tem o significado errado.
Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A falácia Amazônica . A misteriosa falácia Negra.
Hermeneutas deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles chegassem, tudo se complicaria.
-Os hermeneutas estão chegando!
-Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada...
Os hemeneutas ocupariam a cidade e paralizariam todas as atividades produtivas com seus enígmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisa recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.
-Alô...
- O que é que você quer dizer com isso?...
Traquinagem devia ser uma peça mecânica.
- Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.
Plúmbeo devia ser o barulho que o corpo faz ao cair na água
Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração.
A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um som lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:
-Defenestras?
A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas...Ah, algumas defenestravam.
Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria assim defenestradores profissionais.
Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? "Nestes termos, pede defenestração..." Era uma palavra cheia de implicações. Devo tê-la usado uma ou outra vez, como em:
-Aquele é um defenestrado.Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada era a palavra exata.

Um dia finalmente procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. "Defenestração" vem do francês defenestration. Substantivo feminino, ato de atirar alguém ou algo pela janela.
Acabou a minha ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal,não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?

Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo.
-Les defenestrations. Devem ser proibidas.
-Sim, monsieur le ministre.
-São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.
-Sim, monsieur le ministre.
-Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: interdit de defenestrer. Os transgressores serão multados.. Os reincidentes serão presos.

Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes."
(Luís Fernando Veríssimo. O Analista de Bagé. 6ª ed. Porto Alegre.L&PM ed. 1981. p. 29-31)

***

2 comentários:

Leandro disse...

Muito maneiro o texto, não conhecia. E ótima lembrança... Deve ter sido um diálogo bem engraçado.

Ju Foch disse...

Lê,
foi muito engraçado, sim, ainda mais quando eu traduzi o texto aos meus amigos daqui.
Bjs