"Aprender é a única coisa de que a mente nunca se cansa, nunca tem medo e nunca se arrepende"
Leonardo da Vinci

sábado, 9 de outubro de 2010

Friedrich Nietzsche - Sobre a culpa

Estou lendo "Genealogia da Moral", de Friedrich Nietzche, filósofo alemão, nascido em 15 de outubro de 1844 e falecido em 25 de agosto de 1900, tendo vivido o último ano de sua vida em estado de demência.

Este livro foi originalmente escrito em 1887, e a tradução que leio foi realizada por Paulo César de Souza, mestre em história social pela UFB e doutor em literatura alemã pela USP.

Achei interessante o texto que passo a reproduzir:



"4. Mas como veio ao mundo aquela outra 'coisa sombria', a consciência da culpa, a 'má consciência'? - Com isso voltamos aos nossos genealogistas da moral. Mais uma vez afirmo - ou será que ainda não disse? - eles não valem nada. Uma experiência própria muito estreita, 'moderna'; nenhum conhecimento do passado, nenhuma vontade de conhecê-lo; tampouco instinto histórico, uma 'segunda visão' necessária justamente nisso - e contudo se ocupar da história da moral: isso só pode conduzir a resultados cuja relação com a verdade é bem mais do que frágil. Esses genealogistas da moral teriam sequer sonhado, por exemplo, que o grande conceito moral de 'culpa' teve origem no conceito muito material de 'dívida'? Ou que o castigo, sendo reparação, desenvolveu-se completamente à margem de qualquer suposição acerca da liberdade ou não-liberdade da vontade? - e isto ao ponto de se requerer primeiramente um alto grau de humanização, para que o animal 'homem' comece a fazer aquelas distinções bem mais elementares, como 'intencional', 'negligente', 'casual', 'responsável' e seus opostos, e a levá-las em conta na atribuição do castigo. O pensamento agora tão óbvio, aparentemente tão natural e inevitável, que teve de servir de explicação para como surgiu na terra o sentimento de justiça, segundo o qual 'o criminoso merece castigo porque podia ter agido de outro modo', é na verdade uma forma bastante tardia e mesmo refinada de julgamento e do raciocínio humanos; quem a desloca para o início, engana-se grosseiramente quanto à psicologia da humanidade antiga. Durante o mais largo período da história humana, não se castigou porque se responsabilizava o delinquente por seu ato, ou seja, não pelo pressuposto de que apenas o culpado devia ser castigado - e sim como ainda hoje os pais castigam seus filhos, por raiva devida a um dano sofrido, raiva que se desafoga em quem o causou; mas mantida em certos limites, e modificada pela ideia de que qualquer dano encontra seu equivalente  e pode ser realmente compensado, mesmo que seja com a dor do seu causador. De onde retira sua força esta ideia antiquíssima, profundamente arraigada, agora talvez inerradicável, a ideia da equivalencia entre dano e dor? Já revelei: na relação contratual entre credor e devedor, que é tão velha quanto a existência de 'pessoas jurídicas', e que por sua vez remete às formas básicas de compra, venda, comércio, troca e tráfico."

Quando li este trecho, me perguntei não apenas sobre a culpa, elemento tão enraizado em nossa cultura, em especial pela influência cultural deixado por nossos colonizadores, mas na questão da punição, na suposta equivalência entre dano e dor. Estava passando por uma rua em Toulouse quando vi um cookie "voar", partido em diversos pedaços, em razão de um "safanão" que um pai dera em sua filha, agora encolhida no canto de uma vitrine, enquanto aquele pai-agressor apontava-lhe o dedo e gritava comandos de comportamento.
Qual o ensinamento que aquele pai estava tentando passar a sua filha? Respeite-me porque sou maior e mais forte que você? Mas e quando ela crescer e ele enfraquecer? Quando o vigor de sua masculinidade o tiver abandonado e aquela pequena menina tiver florescido em uma mulher? Será ela a dar "safanões" naquele que, então, será mais fraco? Será ele que, idoso e frágil, se encolherá no canto de uma parede protegendo-se dos gritos enfurecidos de sua filha?

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